CARNE, OSSO

O que vale é a precisão do corte, lacerando o osso, rendendo a carne. Na esteira acelerada da produção em massa, certeira é a faca: doze talhos exatos e já não resta nada, nem coxa, nem asa, nem peito, nem carcaça. Sob a luz pálida do frigorífico, aos olhos alertas da câmera, a mão enluvada é uma lâmina imparável. Quinze segundos e o novo ciclo se inicia. Por oito horas, junto à esteira, o trabalhador é uma máquina ligeira em prol da produtividade. Não pensa, não lhe deixam pensar. Enquanto esquarteja meticulosamente, não abstrai, não pode se deixar tomar por qualquer ideia insensata. O trabalhador é meros dedos, punhos e braços; a faca, sua extensão afiada.

Não é a carne que é fraca, mas a indústria frigorífica se esmera em despedaçá-la. Eis o segredo de sua produção tão prolífica, orgulho da economia brasileira: perecível é a carne humana, é ela a única matéria descartável. E assim há de ser enquanto o controle for escasso, os auditores insuficientes, as multas inócuas demais para alterar o processo produtivo, para romper esse círculo vicioso. Pelas lentes de “Carne, Osso”, o vício é exposto ao contar as histórias de suas várias vítimas.

Seis da tarde, 750 mil funcionários recolhem seus corpos e voltam para casa. Tateiam a pele em reconhecimento incerto: cotovelo, pescoço, costas. A dor se alastra por toda parte, a turvar-lhes o julgamento, a asseverar-se em transtornos psíquicos, em doenças neurológicas. Há um que não poderá voltar, porque o braço lhe falta. Outra dorme com o punho amarrado, na posição que mais a alivie. Uma terceira sente que a mão se fecha e não quer mais abrir, o ombro a repuxar seus nervos atrofiados. Funcionária-modelo, no dia seguinte ela voltará ao trabalho, dez anos sem nenhuma ausência.

Enquanto não se detiver o movimento contínuo da esteira, enquanto não se romper esse ciclo, alguém irá querer esgarçar os dedos dela e entre eles encaixar, ainda uma vez, a faca certeira.

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